Grande parte da realidade que vivemos hoje como sociedade não é nada mais do que uma obra de ficção que co-criamos, acordamos e decidimos acreditar juntos. Quais delas não fazem mais sentido? Quais novas estamos criando? Quais fariam mais sentido acreditarmos juntos?
Leis de trânsito, sistema jurídico, horário comercial, profissões, carreira, sistema educacional, diploma, democracia, constituição federal, contratos, acordos comerciais, dinheiro, propriedade privada ou pública, idioma, indivíduo, direitos e deveres, orçamento, metas, estratégia… lidamos e convivemos todos os dias com essas “coisas” que são tão presentes, tão reais que parecem até uma realidade física e objetiva. Porém, se pararmos para pensar, não passam de obras de ficção, coisas que inventamos e decidimos acreditar juntos.
E não é porque são obras de ficção que são menos ou mais importantes que uma realidade objetiva. Aliás, uma das grandes características de nossa evolução como humanos é nossa capacidade de criar e inventar coisas que vão além de algo fisicamente palpável.
Ao longo de nossa história, fomos criando ideias e conceitos, fomos conversando sobre elas a ponto de acreditar tanto nelas que as transformamos em elementos tão reais que hoje não parece fazer o menor sentido não acreditar que elas realmente existam.
Reflita comigo…
Um país é uma realidade física objetiva ou uma ficção em que um grande número de pessoas resolveu (ou foram obrigadas a) acreditar?
Se a gente olhar no mapa, estão lá os países, suas fronteiras estão demarcadas, eles têm uma bandeira, um idioma, um hino, um sistema de governo, inúmeras vezes pessoas dão a vida por seus países. Mas, as fronteiras, as bandeiras, o idioma, o hino, o sistema de governo não são todas obras de ficção?
Se a gente viaja de carro e passa por uma fronteira que diz que ali termina um país e começa outro, a fronteira é uma realidade física objetiva ou uma ideia, uma ficção?
Até há pouco tempo atrás existiam países que hoje não existem mais. Certamente, não foi uma parte do planeta Terra que sumiu ou deixou de existir. O que deixou de existir foi um conceito de nação, foi criada uma nova demarcação numa localização da Terra.
Uma empresa é uma realidade física objetiva ou uma ficção?
Parece difícil de acreditar, porque nós trabalhamos para uma empresa. Temos um crachá. A empresa paga um salário. A empresa tem prédios e escritórios, tem terras e propriedades. A empresa tem produtos, embalagens, frota de caminhões, a empresa tem um nome… mas, quem é a empresa?
Há poucas décadas atrás, criamos uma grande ficção chamada Pessoa Jurídica, ela viabilizou a possibilidade de uma empresa (uma pessoa que não existe) ter bens em seu nome.
Essas ficções nos ajudam a viver em sociedade, nos ajudam a organizar as coisas, nos ajudam a conviver, nos ajudam a criar grandes coisas, nos ajudam a viver a vida e até a percebermos que ela existe.
Mas, também, grandes conflitos surgem quando um grande número de pessoas impõe uma ficção que acreditam como se fosse uma realidade objetiva a um outro grande número de pessoas que acredita em outra ficção.
Percebemos grandes conflitos políticos. Grandes conflitos religiosos. Grandes conflitos morais. Grandes conflitos ideológicos.
O que acontece quando o líder de uma grande nação, ou uma nação inteira, acredita que o mundo é uma grande arenas de batalha onde todas as nações competem entre si e o objetivo é uma nação dominar todas as outras?
O que acontece quando o líder de uma grande nação, ou uma nação inteira, acredita que o mundo é uma grande comunidade global interdependente onde todos precisam cooperar para que todos consigam viver bem?
O que acontece quando esses dois líderes se encontram para conversar?
O que acontece quando uma empresa cria uma estratégia pautada em ser a número 1 e “matar” a concorrência?
O que acontece quando uma empresa criar uma estratégia pautada na cooperação entre organizações que possuem um papel social comum, que estão atentas aos mesmos problemas e demandas da sociedade, para a criação conjunta de produtos e serviços e irão dividir os resultados?
O que acontece quando os líderes dessas duas empresas se encontram para conversar ou propor um acordo comercial?
As ficções que decidimos acreditar juntos acabam alimentando nossa visão de mundo e acabam por se transformar em acordos, ações, constituições, leis, formas de viver e de nos relacionar com os outros. Parecem até que se transformam numa realidade física objetiva e imutável. Elas são chamadas de realidades normativas.
E é bem aí que está o ponto central.
Percebemos a maioria das coisas que vivemos como se fossem realidades físicas objetivas e imutáveis. Precisamos relembrar que a maioria das coisas ao nosso redor são ficções e, por isso, são flexíveis, podem mudar e evoluir ao longo do tempo, na direção que melhor funcionaria para algum propósito.
Será que daqui alguns séculos o conceito de país vai se transformar e não teremos mais um planeta dividido em territórios de nações soberanas com governos independentes?
Será que daqui alguns séculos teremos empresas?
Será que daqui alguns séculos não usaremos mais o dinheiro como nosso acordo confiável de troca?
Será que daqui alguns séculos não conversaremos mais usando letras, apenas emojis e memes?
Não sabemos, ainda.
Mas, o que sabemos é que a ficção é uma das grandes potências do ser humano.
Podemos inventar a realidade com ela. Podemos inventar nosso mundo, nosso país, nossa sociedade, nossa família, nossa empresa, nossa carreira.
Mas, que ficções temos sustentado atualmente? Que ficções temos aceitado acreditar? Que ficções estamos empenhados em co-criar para evoluirmos como sociedade, como organização, como comunidade?
Gostaria de nos convidar a refletir sobre as ficções mais importantes que impactam nossa vida hoje, no trabalho, na família, na forma como levamos a vida…
De onde elas vieram?
Quais as características essenciais dessas ficções? Que valores as sustentam?
Elas estão contribuindo para a nossa evolução e das pessoas que convivem conosco?
Que ideias ou insights de mudanças ou evoluções dessas ficções nós temos tido ou temos ouvido dos outros? Elas fazem sentido?
A quais ficções estamos tão apegados a ponto de acreditarmos que elas são realidades físicas imutáveis? Quais delas não estão colaborando para nossa evolução?
A sociedade que vivemos hoje é fruto daquilo que decidimos, concordamos ou nos sentimos obrigados a acreditar como sociedade.
Não há como escapar.
Somos todos co-responsáveis.
E, já que somos co-responsáveis e trata-se de uma ficção, temos o poder de co-criar juntos a sociedade que queremos.
Parece coisa motivacional de autoajuda, né?
Longe disso. O papo é bem sério.
Que tal experimentarmos co-ciar uma nova ficção numa comunidade bem pequena que convivemos todos os dias? Só para percebermos a força das ficções atuais e o impacto que gera prototipar uma ficção diferente?
Pode ser na família, no time que lideramos, no bairro.
Se no seu time o chefe toma a decisão final, que tal experimentar uma ficção diferente? Que faça mais sentido com o que o time acredita?
Se na sua família o pai ajuda a mãe a criar o bebê, que tal experimentar uma ficção diferente onde os dois são responsáveis e, já que os dois são, não há um que apenas ajude o outro?
Se no seu bairro a prefeitura é a única responsável pela limpeza das ruas, que tal experimentar uma ficção diferente, mais coerente com o bairro que os moradores gostariam de morar?
Se na sua empresa o concorrente é um inimigo, que tal experimentar uma ficção diferente onde ele é um parceiro com o mesmo papel social?
Se na sua religião as pessoas de outras religiões não são irmãs, que tal experimentar uma ficção diferente onde elas podem ser da mesma família, mesmo vocês não concordando com tudo (como qualquer família)?
Se na sua região uma pessoa de outra região é considerada uma forasteira, que tal experimentar uma ficção diferente onde ela é tratada como “de casa”?
Não é fácil. Mas, não é impossível.
Somos todos criadores e co-responsáveis pelas ficções que vivemos.
Acredito eu que não temos assumido essa responsabilidade.
Acredito eu que se não assumirmos já, comprometeremos seriamente todos os seres que convivem conosco nesse lugar do universo.
Artigo originalmente publicado no blog Gestão Fora da Caixa da Exame.com