“Se os seres humanos passaram a maior parte de nossa história alternando fluidamente entre ordenamentos sociais diferentes, montando e desmontando hierarquias, como acabamos empacados num único modo?”
Trago dois grandes insights que tive, até agora, com a leitura do excelente livro “O Despertar de Tudo – Uma Nova História da Humanidade” de David Graeber e David Wengrow.
Para quem gostou dos livros e questionamentos do Harari sobre a história da humanidade e o que ela nos ensina sobre os desafios atuais e futuros, esse livro amplia, expande e inclui uma narrativa não linear e não eurocêntrica, fruto da pesquisa de 10 anos desses dois autores, um arqueólogo e outro antropólogo, que incluíram narrativas, sabedorias e evidências de outras fontes com as quais não estamos acostumados a acessar.
O avanço da tecnologia e do investimento das universidades, Estados e em territórios para além da Europa, nos permite hoje acessar novas narrativas, encontrar novas evidências que ampliam nossa compreensão sobre a história de nossa espécie e fogem da narrativa evolutiva linear que aprendemos na universidade.
Também nos ajudam escapar da dualidade de narrativas sobre nossas origens: a baseada em Rousseau, onde humanos viviam num estado primordial de inocência, em bandos pequenos e igualitários, até a chegada da Revolução Agrícola e sua evolução para cidades e Estados que acabaram com isso e trouxeram tudo o que há de ruim: o patriarcado, exércitos permanentes, execuções em massa e burocratas irritantes; ou a baseada em Hobbes, onde humanos se originaram como criaturas egoístas, de natureza original nada inocente, uma vida solitária, pobre, sórdida, brutal e curta, praticamente todos fazendo guerra com todos; aí, os mecanismos repressivos das cidades e Estados trouxeram o progresso para uma nova condição, proporcionando algo em comum para nos organizarmos civilizadamente em grandes grupos e acabarmos com a barbárie.
Mas, vamos voltar aqui para os insights para as organizações, comunidades e seus movimentos de transformação e de traições amorosas.
Insight 1: Organizações e comunidades podem criar diferentes ordenamentos e padrões sócio-culturais, múltiplos desenhos hierárquicos e distintos modelos de gestão para cada contexto. Nós, humanos, sabemos conviver com diferentes modelos simultâneos para lidar com diferentes contextos simultâneos.
“Vêm-se acumulando evidências arqueológicas segundo as quais, nos ambientes altamente sazonais do final da Era Glacial, nossos ancestrais remotos se comportavam de modo muito semelhante ao dos inuítes, dos nhanbiquaras ou dos crows. Eles iam e vinham entre ordenamentos sociais alternativos, construindo monumentos e então os desativando, permitindo o surgimento de estruturas autoritárias durante certas épocas do ano e então as desmantelando – tudo isso, ao que parece, por entenderem que nenhum ordenamento social era fixo ou imutável. O mesmo indivíduo podia viver em algo que nos parece ser às vezes um bando, às vezes uma tribo, e às vezes algo que tem pelo menos algumas das características que agora definimos como Estados.”
Meu aprendizado para o nosso contexto é que temos o potencial disponível, como espécie, de criarmos e nos adaptarmos a diferentes modelos de organização que podem conviver simultaneamente para lidarmos com os diferentes contextos complexos e desafiadores que temos. Na verdade, precisamos desse potencial agora!
Podemos, dentro de uma mesma empresa ou área, conviver com um modelo mais hierárquico ou mais horizontal, podemos conviver com um modelo de atuação mais executor acelerado e outro mais reflexivo e cadenciado, conviver com uma forma de operar em áreas estruturadas ou em times que se criam e deixam de existir para entregar um projeto específico, a depender do contexto, da necessidade e do objetivo estratégico.
O desafio é que fomos educados em um modelo linear/mecânico/industrial que nos acostumou ao reducionismo de acreditar que há um modelo correto (e outros modelos errados) e que precisamos encontrá-lo e nos submeter-mos a ele, que dará conta de tudo.
Pior ainda, fomos educados a acreditar que sugerir mudanças ou alternativas ao “modelo correto”, incorre em desobediência, traição e o risco de sermos excluídos da organização.
No mundo complexo, conectado, interdependente, imprevisível que vivemos, se não resgatarmos a sabedoria da convivência adaptativa com múltiplos modelos de organização simultâneos, colocaremos em grande risco a perenidade de nossas organizações.
Se pararmos para prestar atenção, muita atenção, perceberemos que essa sabedoria ainda existe, é viva e vibrante. As pessoas de nossas organizações estão constantemente criando e recriando modelos alternativos para lidar com a vida nada padronizada. Mas, nós, lideres e gestores, ao invés de escutarmos e incluirmos essa sabedoria, temos estado mais interessados em matá-la a serviço da manutenção ou da descoberta do “novo padrão correto”, passando a julgar todas as outras alternativas como erradas.
Em nossas organizações, como podemos criar espaços e protótipos para modelos diferentes de lidar e operar para cada contexto diferente? Como resgatar e nutrir essa sabedoria que nossa espécie cultivou por milênios e transformá-la em valor, perenidade e progresso a serviço da vida em nosso planeta?
“Os seres humanos passaram a maior parte de nossa história alternando fluidamente entre ordenamentos sociais diferentes, montando e desmontando hierarquias o tempo todo, talvez a verdadeira pergunta seja: ‘como foi que travamos? Como acabamos empacados num único modo? Como perdemos aquela consciência política antes tão típica de nossa espécie? Como viemos a tratar a eminência e a subserviência não como expedientes temporários? Se tudo começou apenas como um jogo, em que ponto esquecemos que não era mais nada além disso?
Insight 2: Organizações deveriam acolher as diferenças e esquisitices das pessoas como uma reserva de sabedoria potencial para lidar com situações imprevisíveis.
Uma segunda descoberta dos estudos dos Davids, foi constatar que todas as comunidades e agrupamentos humanos conviveram com as esquisitices e excentricidades dos indivíduos de nossa espécie. A diferença não era ter ou não pessoas excêntricas nas comunidades, mas era a maneira como elas lidavam com essas excentricidades.
Muitas comunidades primitivas reservaram papéis específicos para as pessoas mais excêntricas. Algumas delas, quando só um pouco esquisitas, eram lideranças. As mais excêntricas poderiam ser profetas ou lideranças espirituais. Não importa, o que importa é que elas aprenderam a sustentar um espaço para elas, como uma espécie de reserva intelectual para lidar com situações muito inesperadas.
Quando uma transformação muito impactante de contexto sobrevinha sobre a comunidade ou sociedade, eram justamente as pessoas excêntricas que conseguiam assumir um lugar de liderança ou consciência para lidar com o inesperado. Eram elas que tinham respostas e novas ideias de ordenamentos para sugerir.
Fiquei pensando em como as organizações, hoje, massificaram suas competências e modelos de liderança, de forma a padronizar o comportamento e a visão de mundo a tal ponto que exclui a diversidade, a esquisitice e a excentricidade, a ponto de perder esse capital adaptativo e essa sabedoria para lidar com o inesperado.
E, o inesperado ficando cada vez mais comum, precisamos resgatar essa reserva de capital/sabedoria excêntrica.
“O que mais impressionava (Radin) nas sociedades ‘primitivas’ que conhecia melhor era a tolerância em relação à excentricidade. Há todas as razões para crer que céticos e não conformistas existem em todas as sociedades humanas; o que varia é a reação dos outros. Muitas vezes são pessoas apenas um pouquinho esquisitas que se tornam líderes, as realmente estranhas podem se tornar referências espirituais, mas sobretudo pode servir como uma espécie de reserva de talento e discernimento em potencial, a que se pode recorrer em caso de crise ou de uma inesperada reviravolta.”
Era nessa zona de penumbra que todos procuravam um líder carismático adequado para a ocasião. Assim, uma pessoa que podia passar a vida como uma espécie de idiota da aldeia era de repente tida como detentora de extraordinárias faculdades de antevisão e persuasão.”
E aí, o que achou desses dois insights?
Eles fazem sentido para algo que está vivendo em seus contextos hoje?
Faz sentido pensar em criar e conviver com diferentes modelos e abrir espaço para sustentar excentricidades e divergências que podem ser essenciais para lidar com o inesperado num futuro próximo?