“Fico triste ao constatar que, nos últimos anos, desde que a incerteza se tornou nossa companhia constante, as estratégias de liderança deram um grande salto para trás, voltando ao território conhecido do comando e controle. Em parte, isso era esperado, já que os seres humanos fogem para o que conhecem quando confrontados com o desconhecido. Mas, em parte, fiquei surpresa, pois não sabia que somos tão estúpidos. Eu achava que tínhamos aprendido alguma coisa depois de tantos experimentos relacionados a inovação, qualidade e motivação humana. Por que não aprendemos que, sempre que tentamos controlar pessoas e situações, elas se tornam ainda mais incontroláveis?”
(Margaret J. Wheatley — Liderança Para Tempos de Incerteza)
Há alguns anos, recebi de presente da Adriana Tieppo, grande amiga e mentora, uma provocação incrível sobre a ilusão do controle, principalmente quando falamos da complexidade em sistemas vivos, pessoas, etc.
Ela compartilhou um trecho do filme Instinto (1998), em que o personagem de Anthony Hopkins, antropólogo sob custódia do governo americano, trava um intenso, profundo e agressivo diálogo com o personagem de Cuba Gooding Jr., psiquiatra responsável por seu caso.
O psiquiatra quer que o antropólogo fale sobre sua filha, sendo que ele educadamente se recusa. Porém, ao tentar persuadi-lo e obrigá-lo a fazer isso, o personagem de Gooding Jr. joga com o fato de ter o controle sobre sua liberdade, a liberação do uso de remédios e de seu futuro. Com isso, o personagem de Hopkins questiona: “Então, você está no controle?”.
Assim que o psiquiatra responde “Sim”, o antropólogo o agarra, o imobiliza e coloca uma fita em sua boca. Em seguida, pergunta: “Quem está no controle agora?”. Sufocando-o, propõe um teste de vida ou morte em que o personagem de Gooding Jr. terá apenas três chances para acertar a resposta das perguntas do personagem de Hopkins.
“O que eu tirei de você?” é a primeira indagação, sendo respondida erroneamente com “Controle”. “Errado! Você nunca controlou nada!”, diz o antropólogo. A segunda é “O que você perdeu”, em que o psiquiatra retruca com “Minha liberdade”.
“Seu tolo! Você pensou que era livre? Onde você foi às 14h? Foi para a academia? De manhã, o que te fez acordar? O que te faz ficar preso a esse trabalho aqui, ambição?”, replica o antropólogo que, em seguida, ameaça o psiquiatra relembrando-o que ele só tem mais uma chance.
“O que você perdeu? O que eu tirei de você?”, indaga o personagem de Hopkins. “Minhas ilusões”, responde o outro. Com um sorrisinho no rosto, o antropólogo o parabeniza e o liberta dizendo: “Não perdeu nada além de suas ilusões”.
Ilusão. O controle sobre sistemas vivos e pessoas é pura ilusão, assim como a tentativa de dirigi-los. Mas, se não temos controle ou direção sobre outras pessoas, de que maneira podemos exercer o papel da liderança? De que maneira podemos influenciar pessoas e sistemas para movimentos de transformação ou mesmo para um grande objetivo ou propósito?
Tenho aprendido e acredito que a liderança não está em uma pessoa ou em uma competência. A liderança acontece na relação. No espaço entre. É um conviver. Agora, já que não podemos dirigir, controlar ou mesmo prever o que outra pessoa escolhe, faz e pensa, o que podemos fazer?
“Não se pode dirigir um sistema vivo. Só sensibilizá-lo.”
(Maturana e Varela)
Podemos fazer algumas coisas, como sensibilizar o outro ou um sistema:
Bons convites: podemos nos colocar em um lugar de aceitação de que o controle é uma ilusão, de aceitação de que o que enxergamos é apenas uma perspectiva da realidade e não a verdade, de aceitação de que o outro é também um ser humano igual a nós. E, neste lugar, fazer um bom convite.
Um convite não é uma convocação ou ordem, mas uma pergunta que pressupõe que o outro terá inteligência, maturidade e liberdade o suficiente para respondê-lo com o que julgar ser melhor para ele mesmo. Também se pressupõe que teremos inteligência, maturidade e liberdade para lidar com a resposta.
Bons convites podem nos sensibilizar, nos fazer ver algo que até então não víamos e nos ajudam a iniciar importantes movimentos de transformação. E, nessa interação entre quem faz o bom convite e quem o aceita ou não, há liderança.
“Os biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela explicam que mais de 80% das informações que usamos para criar percepções visuais do mundo já estão dentro do cérebro. (…) Num sistema, as informações que vêm de fora só perturbam: não funcionam como instruções objetivas.”
(Margaret J. Wheatley — Liderança Para Tempos de Incerteza)
Mudar algo em nós que perturbe o atual equilíbrio da relação/do sistema: todas as relações e sistemas vivos se configuram em um determinado equilíbrio e ficam assim enquanto ele funciona. A partir do momento que o equilíbrio para de funcionar, ou seja, quando um dos membros percebe que outro equilíbrio poderia funcionar melhor ou fazer mais sentido, tem-se a chamada oportunidade de evolução que uma crise pode proporcionar. Como fazer isso?
Como toda relação e sistema vivo está interconectado, podemos sensibilizar ou influenciar uma mudança, fazendo algo diferente em nós mesmos. É possível escolher algo simples, mas que cause impacto nas relações. Fazendo esse algo diferente, perturbamos o equilíbrio atual da relação ou das conexões do sistema, obrigando-o a fazer algo para se reequilibrar e reconfigurar. Agora, nós não teremos controle sobre qual será o novo equilíbrio, mas saberemos que ele será diferente do atual.
O estado de recurso e a intenção são pré-requisitos essenciais para que os bons convites e as tentativas de perturbar o equilíbrio do sistema tenham a possibilidade de caminhar num propósito essencial mais próximo daquele que nós acreditamos ser a escolha que mais faz sentido.
Estado de recurso é aquele estado em que estamos presentes, 100% envolvidos na experiência, centrados, podendo usar nossas múltiplas inteligências e recursos que organismo, corpo, mente, etc. nos dão. Existe uma série de exercícios para acessar esse estado e você pode pesquisar e experimentá-los até encontrar os mais adequados para você. (Faça um busca sobre exercícios de centramento, de presença, de meditação e de mindfulness).
Clarificar nossas intenções, para nós mesmos e para os outros, é essencial para o movimento e para o exercício da liderança no espaço entre. Os exercícios para nos conectarmos ao estado de recurso são, também, muito úteis para desvelarmos e nos conectarmos às nossas verdadeiras intenções.
Comece simples, você já sabe fazer isso: o convite é que comecemos o movimento de maneira simples, mas com a confiança de que já sabemos e praticamos tudo o que aqui está ali escrito em diversas situações em nossas vidas, principalmente nas relações.
Isso é evidenciado na experiência da maternidade/paternidade. Se pararmos para pensar e relembrarmos das nossas histórias de vida e transformação, vamos enxergar nelas a crise, a evolução e a diferença que fez estarmos presentes. Além disso, é possível observar como usamos os bons convites, mudamos algo em nós e como isso impactou uma série de outras mudanças nos outros.
Vamos crescer juntos e evoluir como líderes no contexto da complexidade e da incerteza e do erro, não fazendo liderança, mas convivendo liderança.
Alessandro Gruber é sócio consultor da Corall e escreve para o blog Gestão Fora da Caixa da Exame.