E os princípios que elas seguiram para deixar o seu legado e salvar milhões de vidas
Por Fábio Betti
No dia 7 de março de 1985, um bilhão de pessoas ao redor do mundo ouviram simultaneamente “We are the World”, música que, rapidamente viraria um hino tocado e cantado em todas as línguas.
A música faz parte do projeto “USA For Africa”, que reuniu mais de 45 músicos, entre as mais populares estrelas pop da década de 80, foi idealizado e realizado em tempo recorde e gerou cerca de 160 milhões de dólares em valores de hoje com a venda do single, revertidos integralmente para mitigar a fome na África.
Esse feito, narrado de maneira emocionante no documentário “A Noite que Mudou o Pop” (“The Great Night in Pop”), revela, mais do que uma ação social, que, em si, já é algo memorável, que o impossível não existe quando se reúne um conjunto de lideranças mobilizadas por uma causa comum e convidadas a dar o seu melhor.
Este artigo se propõe a analisar os diferentes perfis de liderança que se manifestaram ao longo da curta jornada de menos de um mês que transcorreu entre a idealização à concretização do projeto, bem como os princípios que essas lideranças seguiram para salvar milhões de vidas e eternizar 28 de janeiro de 1985 como a noite que mudou a história do pop.
Breve análise dos perfis de lideranças do projeto USA For Africa
1: Liderança inspiradora
“I have a dream” é, até hoje, a frase mais lembrada de um discurso já feito na era moderna. A amizade com Martin Luther King, com quem várias vezes foi visto dividindo o palco, talvez tenha dado a Harry Belafonte a inspiração que ele precisava para, como músico e ativista, lançar a primeira semente de um movimento que se propunha a combater a fome na África.
Seu sonho, inspirado no “Band Aid”, iniciativa nascida na Inglaterra no ano anterior e materializada pelo single “Do They Know It’s Christmas?”, era movido pela ambição de ter artistas negros norte-americanos na liderança de um movimento semelhante em prol de seus conterrâneos africanos.
O principal papel da liderança inspiradora é o de representar um propósito capaz de mobilizar outras lideranças e equipes na direção de algo que todos desejam e que, até aquele momento, ninguém ainda havia materializado.
Harry Belafonte ocupou esse papel inicialmente e Bob Geldorf, idealizador do “Band Aid”, reforçou-o, quando convidado pelo primeiro, abriu os trabalhos na antológica noite da gravação ao lembrar a todos os músicos e técnicos presentes no estúdio da gravadora A&M em Los Angeles dos possíveis impactos do que essas pessoas poderiam causar a partir do que elas estavam prestes a realizar. Belafonte trouxe a fagulha, Geldorf acendeu a tocha.
2: Liderança empreendedora
Um propósito poderoso é o começo de tudo, mas um propósito não concretizado não é nada. Belafonte então convidou Ken Kragen, um dos produtores mais influentes à época, para ajudá-lo a concretizar o projeto. E os dois resolveram chamar Lionel Ritchie, que estava no auge de sua carreira, para compor a música.
A liderança empreendedora é a que faz acontecer, concretizando o propósito e transformando ideias em ação. Cabe a ela assegurar as melhores condições para que projetos coletivos sejam realizados e produzam os melhores resultados possíveis.
Ritchie e Kragen compartilharam esse papel, cada um com suas competências únicas. Kragen tinha influência e o poder necessários para trazer os artistas mais famosos para o projeto. Ritchie sabia como ninguém como lidar com eles.
3: Liderança criativa
Ritchie tinha total condição de compor a música sozinho, mas, mais do que uma música que viralizasse, o projeto precisava de um artista viral. E se alguém reunia as características de excelente compositor e cantor com muita popularidade, esse alguém era Michael Jackson. E foi assim que Lionel Ritchie e Michael Jackson trabalharam juntos pela primeira vez.
Apesar de Michael não ser capaz de tocar um instrumento, ele foi o principal responsável pela composição da música, cujo demo foi gravado e enviado para todos os artistas convidados apenas 4 dias antes da gravação.
Cabe à liderança criativa sustentar o espaço de tensão do não saber, para que as ideias possam fluir livremente até que o processo caminhe para seu desfecho, com a entrega do produto final.
Ritchie conta que, quando ficou sabendo que a gravação ocorreria em poucos dias e a música ainda não havia ficado pronta, não entrou em pânico nem ficou desesperado, porque confiava em Michael e confiava no processo.
4: Liderança técnica
A liderança técnica é composta por pessoas que costumam ficar longe dos holofotes e que são absolutamente essenciais para que tudo funcione perfeitamente. O maestro Quincy Jones, que já havia trabalhado com artistas consagrados como Michael Jackson, Frank Sinatra, Ray Charles, Areta Franklin, entre outros, foi incumbido desta função.
A liderança técnica atua nos bastidores, cuidando de ferramentas, processos, controles, enfim, da produção ou cozinha do projeto, assegurando as condições para que as estrelas possam brilhar no palco.
Mas Quincy não estava só. Ele juntou um time de craques que, entre outras coisas, estudou profundamente a voz de cada um dos músicos convidados para organizar solos e compor duetos e trios que funcionassem à perfeição para o resultado do todo.
Além da experiência invejável, o maestro ainda tinha a vantagem de ser uma pessoa muito respeitada no meio artístico. “Se esse projeto tem o Quincy, estou dentro” foi a forma como muitos músicos aceitaram o convite, o que demonstra que uma liderança técnica também pode contribuir com outras competências essenciais, revelando algo óbvio mas que é importante lembrar: todos somos seres multidimensionais, com múltiplos talentos e contribuições para o mundo.
5: Liderança emergente
Toda organização possui sua estrutura formal, que é usualmente hierárquica e representada por um organograma que lembra uma pirâmide. Acontece que a liderança não acontece só na hierarquia. Pelo contrário, quando se cria um ambiente seguro para as pessoas contribuírem com o seu melhor, formas diferentes de liderar emergem de acordo com a necessidade. Foi isso o que se deu com o Steve Wonder, que, com seu jeito brincalhão, deixou o clima da gravação mais leve e, quando Bob Dylan travou, foi quem o ajudou a encontrar o seu espaço e brilhar.
A liderança emergente surge quando menos se espera e só aparece porque se sente segura para mostrar suas caras sem ser chamada, porque mais que outra liderança que a desperte, ela está arrebatada por um propósito que a faz operar em fluxo e está a postos para cumprir sua missão.
Foi isso o que aconteceu com Steve Wonder e com outro músico muito menos conhecido que ele. Trata-se de Huey Lewis, da banda Huey Lewis and the News. Se você nunca havia ouvido falar dele até então, não se envergonhe. Eu também não. E imagina ter que substituir, sem qualquer preparo prévio, assim, na lata o Prince! E ainda entrar na música depois do Michael Jackson e da Cindy Lauper. Pois foi isso que aconteceu com o Huey, que, mesmo apavorado, foi lá e mandou bem o seu recado, em mais uma prova cabal de que uma liderança movida por um propósito poderoso é capaz das coisas mais extraordinárias.
Agora vamos discorrer sobre alguns princípios que identificamos como grandes pilares para que o projeto pudesse ser realizado de maneira tão bem sucedida.
1. Agarre a oportunidade com as duas mãos
Há um ditado árabe que diz que adversidades são grandes oportunidades. Como juntar os maiores músicos da atualidade para realizar o projeto, haja vista a complexa agenda de cada um? Foi aí que entra o American Music Awards. O evento iria reunir um número incrível de estrelas pop que eram desejadas para o projeto. Elas já estariam todos em Los Angeles para a premiação. O negócio era arrumar um estúdio, levá-los todos para lá depois do evento e, em uma noite, gravar a música e o clipe. E, mesmo que tudo isso iria acontecer em poucos dias, adicionando uma pressão a mais, a oportunidade estava ali. Era pegar ou pegar!
2. Ofereça liberdade dentro de uma moldura (“freedom within a frame”)
Para lidar com um desafio de alta complexidade, é preciso oferecer espaço para o melhor de cada um se manifestar, mas dentro de algumas linhas claramente definidas. Quando Steve Wonder resolveu propor que os músicos cantassem o refrão da música num dialeto africano, ele precisou ser lembrado por Bob Geldorf que aquela língua não era falada na Etiópia e que mais importante do que se comunicar com os necessitados da África era se comunicar com quem tinha o poder de resolver o problema deles. Nesse momento onde a noite já avançava e havia um cansaço geral, Geldorf exerceu com maestria seu papel como uma liderança inspiradora, relembrando o propósito do projeto e os limites criativos para estabelecidos para cada um dos seus participantes (“freedom within a framework”).
3.Sustente a tensão do não saber
Entre tantos desafios, havia a pressão do tempo para compor e produzir a música. E não era uma simples música. Precisava ser um hino que se popularizasse rapidamente e emocionasse as pessoas a ponto de elas saírem correndo para comprar o single. Para lidar com o espaço do não saber, Ritchie conta que ele e Michael nunca duvidaram de que iriam acabar criando algo memorável. E, mesmo quando o tempo se acelerou, eles jamais desconfiaram do que eram capazes. E, no estúdio, o clima predominante era de leveza e confiança, mesmo que os recursos técnicos disponíveis na época tornassem o desafio muito difícil. Vamos lembrar que ainda não havia internet nem gravação digital.
4. Deixe o ego do lado de fora
Esse era o aviso dentro do estúdio. E, mesmo que fosse impossível de segui-lo à risca, afinal estavam ali os maiores egos da música pop dos anos 80, a existência dessa regra foi essencial para a concretização do projeto num tempo tão curto: 8 horas de gravação! Só que nem todos a aceitaram. Prince, por exemplo, que se colocava como rival de Michael Jackson, foi o grande premiado daquela edição do American Music Awards, faturando tudo o que podia com seu álbum “Purple Rain” e o hit “When Doves Cry”. Mas deixou Lionel Ritchie no vácuo e esnobou o convite, perdendo uma grande chance para entrar para a história.
5. Aproveite a jornada
Bruce Springsteen terminou sua turnê na noite anterior e voou para Los Angeles só para participar da gravação. Lionel Ritchie era o mestre de cerimônias do American Music Award e mesmo conquistando seis prêmios, só pensava no que iria acontecer em seguida. Quando, após uma noite exaustiva dentro de um estúdio, que começou por volta das 22h e seguiu até o início da manhã seguinte no estúdio da A&M, Diana Ross aparece chorando e se dizendo triste porque a gravação havia acabado, sabemos exatamente quanto o propósito foi capaz de tocá-la e levá-la – e não só ela – a um resultado muito além do esperado. Ela sabia em seu íntimo que algo dessa natureza dificilmente iria se repetir – e de fato não se repetiu. O mesmo ocorre com movimentos de transformação nas empresas. Por isso, a importância de agarrar a oportunidade com as duas mãos e tirar dela o máximo de aprendizados possível, para que você e todas as pessoas se tornem uma versão ainda melhor de si mesmas. E ainda sejam lembradas por isso.
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