O caso da empresa gaúcha Mercur é um dos mais delicados e corajosos que encontramos em nossa pesquisa: mudança radical da gestão numa empresa quase centenária, próspera e bastante tradicional, localizada em Santa Cruz do Sul, a 150 quilômetros de Porto Alegre.
Fundada em 1924 por Jorge e Carlos Hoelzel, descendentes de imigrantes alemães, a Mercur começou produzindo artefatos de borracha para consertar os grossos e maciços pneus fabricados na época. Arquiteto de formação, Jorge, em parceria com o irmão, Carlos, desenvolveu formulações que só existiam nas grandes indústrias americanas e alemães. Tendo sempre a borracha como eixo, a empresa cresceu ampliando linhas de produtos e hoje comercializa desde pisos e revestimentos até material escolar. Emprega 700 funcionários e navega no azul. “Nunca atrasamos uma duplicata, uma folha de pagamento”, conta Jorge Hoelzel Neto, atual conselheiro, membro da terceira geração da família no comando dos negócios, na longa entrevista concedida para esta pesquisa, em setembro de 2012.
Na gestão da empresa desde 1991, com o apoio das duas irmãs (a essa altura, o outro ramo da família, ligado ao tio-avô Carlos, já havia se afastado do negócio), algo incomodava Jorge Neto, uma inquietude que derivava de sua prática espiritual e que lhe dizia que sua empresa não estava no caminho certo. Para ele, as organizações esqueceram suas origens e seu dever primordial de servir às pessoas, tornando-se reféns de seu capital, olhando apenas o próprio umbigo. Foi então em 2008 que entenderam a necessidade de mudar os rumos da gestão. Tinha uma ideia na cabeça: estimular clientes, fornecedores e funcionários a integrar uma cadeia sustentável no planeta. Enquanto muitas companhias usam o discurso da sustentabilidade como estratégia de marketing, o conselheiro da Mercur ousou levar para o dia a dia da empresa suas convicções mais profundas e está mudando a face do negócio.
Preparada cautelosamente por Jorge, suas irmãs e seu braço direito na operação da Mercur, o diretor Breno Strussmann, a mudança, ou “virada de chave”, foi comunicada à comunidade de funcionários reunidos no auditório de um colégio próximo no dia 13 de julho de 2009. “Queremos o mundo de um jeito bom para todo mundo. Ter produtos que levem bem-estar. Praticar a sustentabilidade em relação às pessoas — porque elas irão cuidar do meio ambiente. Atuar em mercados éticos, que valorizem a vida.” Assim Jorge Neto resumiu o espírito daquele dia e as novos Direcionadores que passariam a reger os destinos do negócio.
Para começar, a Mercur não teria mais chefes e a hierarquia até então convencional deixaria de existir. Os cinco diretores passariam a se chamar “facilitadores” e sua principal função seria abrir caminho para a implantação dos novos direcionadores e direcionamentos, os princípios que, daí em diante, norteariam o posicionamento e as metas da companhia. Alguns deles:
- 30% de redução de insumos não renováveis até dezembro de 2014 e o compromisso de usar apenas insumos renováveis para os produtos da linha de bem-estar.
- Novos modelos de negócios construídos de modo a maximizar ocupação e renda, beneficiando a população local.
- Não ter, até 2014, nenhum produto em portfólio que exija testes com organismos vivos em qualquer etapa do processo produtivo.
- Não fazer negócios com indústrias de tabaco, de armamentos, de jogos de azar ou cujas cadeias impõem maus tratos a animais.
Os facilitadores logo arregaçaram as mangas. Um exemplo didático da ação que se espera deles diz respeito ao óleo de mamona, matéria-prima empregada na produção dos artigos da Mercur e habitualmente importada de São Paulo para suprir a demanda de cerca de 80 toneladas/ano. A mamona é um vegetal relativamente comum e de plantio descomplicado; não seria o caso de envolver pequenos produtores locais nessa cultura? “Contatamos o Movimento dos Pequenos Agricultores e perguntamos se mamona dá aqui. Eles se entusiasmaram. Então, falamos com a universidade para desenvolver um óleo adequado ao nosso consumo. Nessa cadeia, a Mercur entrará como compradora, depois que a universidade tiver pesquisado e formulado e o MPA tiver disseminado essa agricultura entre seus associados.” Está contemplado aí o item que visa a oferecer ocupação e renda à população local — e ainda propor uma alternativa ao tabaco. Santa Cruz do Sul, é bom lembrar, é conhecida como a capital nacional do fumo, cultura que responde por cerca de 80% da economia local.
Abaixo dos diretores/facilitadores, as mudanças na empresa continuavam. Cada uma das grandes áreas– suprimentos, logística, vendas, impacto no meio ambiente etc. — seria coordenada por um colegiado de funcionários; esses colegiados, em conjunto, comporiam a sustentação para as operações da companhia. Sem o mandar e obedecer característico das estruturas verticais, cada pessoa teria que definir suas tarefas de forma que complementassem as do grupo, relacionando-se com os colegas num aprendizado de respeito e tolerância. Para ajudar na nova organização, a Mercur fez um acordo com o Instituto Paulo Freire, de São Paulo, e aplicou uma espécie de versão empresarial da pedagogia do oprimido a um grupo de 100 funcionários, incumbidos de levar o conhecimento aos colegas. O processo durou um ano e não foi livre de tropeços. “Teve gente que pensou: ‘Bem, agora não tem chefe, não preciso trabalhar todo dia’. E não vinha para a empresa”, relata Jorge Neto. Outros desabavam, desorientados sobre como agir numa organização que, de um dia para o outro, extinguiu as lideranças e exigiu autonomia e responsabilidade de cada um. “Pegávamos os funcionários em crise pela mão, conversávamos, explicávamos que nossa proposta era de uma nova leitura de vida.” Ainda assim, alguns funcionários deixaram a empresa por não se identificar com as transformações.
Jorge ainda analisa a questão da avaliação do desempenho, que apenas começa a amadurecer, mas já trabalha para reduzir o fosso entre o maior e o menor salário dentro da Mercur — outro de seus direcionamentos (a ideia é que a diferença tenha diminuído 10% até 2014); para isso, criou faixas salariais e, a cada data-base, oferece reajustes maiores para as camadas mais baixas. Estruturou um programa de participação de lucros que pode render até 1 salário e meio a mais por ano. E avisou claramente que não planeja demissões. “A proposta é que ninguém saia. O que estamos montando é para nós; se fizermos direito o benefício voltará para nós.” Propôs como política de recursos humanos um programa intensivo de promoções: a Mercur hoje praticamente só recruta novos funcionários para o chão de fábrica. As demais posições são preenchidas por meio de reconhecimento de talentos internos. E, passados três anos da desestruturação da cadeia de comando, Jorge Neto garante ter funcionários orgulhosos de sua autonomia e das causas que a empresa abraçou.
Se a devastação da hierarquia já parece uma transformação radical, é nessas causas — e em suas consequências — que fica mais evidente a busca pela coerência demonstrada pela Mercur. Jorge Neto está questionando de que são feitos os produtos e o que entregam aos clientes. Pesquisa, por exemplo, uma borracha “verde”, produzida com matérias primas renováveis em vez do material abrasivo habitual. Chegou ao ponto de cortar na própria carne, revendo o modelo e a estrutura do negócio para ser coerente com o propósito da empresa; se necessário, não hesita em descontinuar linhas que não correspondem aos novos anseios, diminuindo assim a receita.
Um episódio marcante da nova fase ocorreu ainda em 2009, logo após a “virada de chave”. Havia alguns anos, a Mercur vinha pesquisando a fabricação de uma nova esteira de material atóxico para linhas de produção. Tratava-se da encomenda de um cliente da indústria do tabaco. O cliente em questão, advertido pela Anvisa, precisava instalar em suas linhas uma esteira diferente das que existiam então, feitas de PVC. Formulação pronta, mercados promissores abrindo-se no horizonte, Jorge Neto teve um estalo. “De onde viria esse lucro que financiaria nosso bem-estar particular?”, perguntou-se, apenas para responder a si mesmo: “Do mesmo fumo que provoca câncer e está levando meu vizinho para o hospital. Aquilo bateu forte”. Procurou o cliente e avisou: não produziriam a esteira. “Tivemos que explicar muitas vezes que agíamos em favor das pessoas. O pessoal da indústria do tabaco entendeu. Eles são muito pressionados, já estavam vivendo outras situações parecidas.” Meses depois, outra saia-justa empresarial. Uma montadora, após vencer licitação para a venda de veículos para a Organização das Nações Unidas, procurou a Mercur para produzir uma peça que deveria servir de apoio para atiradores. Um funcionário do chão de fábrica questionou a finalidade da produção e a encomenda, afinal, não foi fechada.
Tanto no caso da esteira quanto no da peça para o veículo, tratava-se, lembra Jorge Neto, de receita não realizada. A Mercur não havia ainda ganhado dinheiro com os dois produtos, o que, de certa forma, tornou menos penosa a ideia de abrir mão desse ganho futuro. Em outros casos, porém, a decisão de pensar no “mundo de um jeito bom para todo mundo” significou renunciar a ganhos polpudos. Até recentemente, a Mercur licenciava produtos com personagens adorados pelas crianças, como Barbie e Moranguinho. “Até o momento em que nos demos conta de que não fazia sentido a mesma borracha escolar custar o dobro só porque tinha a imagem da Barbie. Queremos conviver com isso?” Levada aos funcionários, a pergunta resultou na ruptura dos licenciamentos — e, aí sim, numa queda de receitas. “Foi um momento de reflexão muito importante e todos puderam se expressar.”
A transformação na Mercur teve início num tempo de grande prosperidade financeira. 2010 e 2011 foram grandes anos para a companhia. As decisões de negócio tomadas após a “virada da chave”, no entanto, começam a afetar a lucratividade da empresa, que, no final de 2012, foi obrigada a se perguntar: se já não entra tanto, o que pode deixar de sair? Cortaram-se investimentos em áreas que parecem não mais fazer sentido no novo modo de operação, como as dispendiosas feiras de papelaria em grandes centros, como São Paulo. Jorge Neto não descarta corte de horas extras, mas afirma trabalhar para afastar essa sombra. Seu discurso é de confiança no futuro, amparado pela absoluta certeza de estar fazendo a coisa certa: investindo no que possivelmente será a economia do futuro, baseada em relacionamento, inovação, sustentabilidade, uso eficiente de recursos. “Nossos concorrentes acham que estamos loucos. Os clientes dizem, ‘Nossa, o que vocês estão fazendo é legal, mas não vai se sustentar, é muita coragem!’. A estes eu respondo: ‘Não quero coragem, quero parceiros para caminharmos juntos’. Isso ainda está difícil.” Nossa avaliação, nos termos da pesquisa, é que estão chegando à metade do caminho que terão percorrer para consolidar a mudança. Mas parecem decididos a trilhar o trecho que falta.
Mercur — Principais Características
Propósito
Cultura
Organização
- Propósito maior da empresa, para com a Terra e sociedade
- Sucesso multidimensional e multi-stakeholder
- Metas claras de diminuição de insumos não sustentáveis
- Criar novos modelos de negócios para maximização da ocupação e renda
- Respeito a todas as formas de vida
- Cuidado das pessoas como estratégia de sustentabilidade
- Valorização da vida
- Compaixão e atuação ética
- Diálogo como instrumento de coordenação
- Respeito e tolerância
- Autonomia e protagonismo
- Redução drástica da hierarquia
- Escolha consciente de setores de atuação e parceiros, coerente com propósito
- Times por setores e gestores corresponsáveis por setores Diminuição entre o diferença entre maior e menor salário na empresa
- Incentivo variável coletivo baseado no resultado global da empresa
- Cadeia de valor sustentável
- Marketing consciente
- Uso de materiais naturais e sustentáveis