Tenho lidado com o tema da liderança há mais de 30 anos. São muitos anos de experiências, observações e estudos teóricos. No último ano, tenho mergulhado, com alguns dos meus sócios da Corall, numa convivência mais intensa com as Lideranças Pataxó, especificamente na Aldeia da Reserva da Jaqueira, na Bahia.
O que tenho aprendido nesta experiência? E quais as lições que tenho tirado desta vivência?
Primeiro, vamos abrir mão do “bom selvagem”. Este personagem romanceado, presente na literatura e popularizado por Rousseau em seus trabalhos, não existe. Este ser ingênuo e puro, que poucas condições tem para entender a complexidade do mundo não tem a ver com a realidade dos povos originários e certamente nada tem a ver com as lideranças da Jaqueira.
Segundo, e fundamental; se quando mencionei lideranças antigas você imaginou que eu estava me referindo aos Pataxós, e quando falei em lideranças para o futuro imaginou que eu me referia aos líderes que hoje povoam o universo imenso da política e das corporações; lamento. Não fui claro ao me expressar. Entre as lideranças indígenas Pataxó, encontrei alguns dos líderes mais potentes que já conheci, com visões e formas de ação que muito modernas, alinhadas com a construção de um futuro mais coerente e inspirador.
A realidade é mutável.
Tudo muda constantemente, portanto, nossa forma de viver, nossa identidade e a maneira como nos relacionamos com nossas tradições e com os demais elementos ao nosso redor, deve se transformar também. Desta forma, a liderança não é e não pode ser, a busca pela preservação.
Preservar o passado é o caminho dos reacionários, que frente às suas próprias dificuldades em adaptarem-se às mudanças naturais do mundo, clamam que o passado era um tempo perfeito e correto. Esta forma de lidar com o mundo é apoiada numa ilusão infantilizada de que o fluxo da vida pod
e ser controlado, e de que alguém é culpado por essas mudanças que incomodam. Pregam normalmente a resistência e a violência num discurso conservador e iludido.
Na Jaqueira, a busca por uma forma de vida tradicional, seguindo rituais e costumes Pataxó, não é uma volta ao passado. É um caminhar ao futuro. Buscando novas respostas para aquilo que é essencial para eles.
Oiti, um artista da comunidade, cuida da Casa de Memória, onde expõe uma interessante sequência de representações dos Pataxó e como foram se transformando ao longo dos anos. Não reconhecem sua identidade em uma imagem do passado, mas sim neste fluxo vivo de transformação constante. A aldeia inteira cuida desta memória e desta forma de vida, mutável e adaptativa. O passado não é apresentado como algo imóvel e idealizado. Ele é fluxo, é múltiplo, e está ao lado do presente.
Como este passado e este futuro se relacionam?
Ao redor da fogueira, com trajes tradicionais feitos com nada além dos elementos retirados da natureza que os cerca, eles dançam e entoam cantos tradicionais. Mas, novamente, não espere encontrar o bom selvagem ingenuamente repetindo rituais. Este grupo de pessoas tem um discurso articulado que honra suas tradições, honra o conhecimento profundo sobre a natureza e sobre como somos uma parte disso. Sua fala e forma de vida expressam um profundo mergulho em uma visão sistêmica e complexa. Também são politizados e esclarecidos sobre as dificuldades do seu caminho.
Estruturam projetos e os apresentam a uma multiplicidade de editais que os ajudam a sustentar, não somente a aldeia, mas uma visão de futuro a ser construída. Uma for
ma abundante de relação com a sociedade maior. Uma visão onde ocupam seu espaço e se compõe como uma parte, ativa e não marginalizada. Não estão lutando contra a
invasão dos europeus. Estão lutando a favor de um futuro que os inclua sem que precisem deixar de ser quem são para isso.
Mas estão também trabalhando para ampliar a narrativa da sua história. Sim, eles falam na invasão portuguesa. Não falam no descobrimento, pois não faria sentido nenhum descobrir algo que já há muito estava descoberto, habitado, culto. Sua busca pela tradição não é a busca por um retorno iludido a uma existência pré chegada dos europeus. É a busca de um futuro onde sua tradição conviva com as demais, e onde se relacionam de forma respeitosa. Eles dançam seu Auê na fogueira, mas também gostam de ir os forró vez por outra. Hoje, em 2022, são indígenas, são Pataxó, são baianos, São brasileiros. Essas múltiplas identidades convivem. Como convivem em todos nós, nossas múltiplas identidades.
Lideranças modernas devem acolher o movimento, buscar caminhos para a aceitação e a adaptação. Ajudar aqueles com maior dificuldade em adaptar-se a encontrarem caminhos. Devem reconhecer suas próprias dificuldades em aceitar que ciclos terminam e outros reiniciam, e devem, a partir desta consciência, convidar a todos para uma visão de futuro vibrante. Mas esta imagem de futuro estará sempre à frente. Nunca atrás.
Mantenha os Rituais
Neste caminho inevitável de transformação, não deixe de praticar e fazer os rituais. São eles que permitem a manutenção e o ensinamento sobre sua identidade, coletiva e individual. A manutenção dos rituais nos permite caminhar em direção a um futuro ainda desconhecido sem nos perdermos de quem somos. E sem nos perdermos uns dos outros. Ao repetir percebemos com maior clareza o que se mantém, e mesmo o que se transforma. Alguns desses rituais já estavam mortos. Guardados timidamente na memória dos antigos. Mas é possível e rico resgatar elementos deixados no passado quando for para colocá-los a serviço de um futuro novo.
Os Pataxó vem resgatando sua língua, seus cantos, sua forma de vida. Também gerenciam escolas, treinam jiu jitsu, estudam, ensinam e aprendem. São sempre muito disponíveis para aprender. Se transformam sem medo ao redor daquilo que os mantém.
A roda de histórias
Vou acabar falando da roda que se forma toda noite ao redor da fogueira. É um ritual orgânico, sem nome, sem combinados. Nele, observei momentos fascinantes. Os Pataxó são exímios contadores de histórias. Nesta roda, sentam-se as lideranças, misturados com quem quiser. Quem ali estiver, está ali. E imediatamente está junto, horizontal e sem distâncias. Ali as histórias ensinam a História. Ensinam as tradições e os valores. Contam os causos, formam identidade. Ali, todos escutam. Sim. Eles se escutam. Eles não se interrompem. Ninguém jamais interrompe o outro para corrigir sua narrativa, ou oferecer uma memória pretensamente mais precisa que a outra. Ali, eles falam. Ali, eles ouvem. Ali, toda narrativa é verdadeira e tem valor. Ali a hierarquia se dissolve de forma bela e sutil. Ela está presente apenas em forma respeito e admiração de uns pelos outros. Ali assisti uma das mais bonitas e poderosas formas de força das lideranças. Ali, onde, aparentemente, a liderança nem lidera.